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sexta-feira, 13 de junho de 2025

Um Outro ‘Ovo da Serpente’ Está Rachando

Um Outro ‘Ovo da Serpente’ Está Rachando
Por Marcelo Carvalho-Bastos

Da bomba de Nagasaki aos conflitos contemporâneos, sinais de uma nova hegemonia global se manifestam sob a lógica do domínio e da destruição calculada.

Atualmente, perto do aniversário de 80 anos da bomba de Hiroshima, o mundo volta a exibir rachaduras já conhecidas — só que em novos formatos. Desde a explosão da bomba atômica sobre Nagasaki, em 1945, entramos numa nova fase da história. Aquilo não foi apenas o encerramento de uma guerra. Foi o nascimento de outra coisa: a era da dominação total, da dissuasão por medo, da violência justificada em nome da “paz”.

É por isso que chamo esse processo — que começou ali, mas nunca cessou — de “O Ovo da Serpente”, numa referência ao filme de Ingmar Bergman. A serpente já estava dentro do ovo: a lógica do poder absoluto, da hegemonia global e da banalização da violência. Hoje, esse ovo está rachando. E o que sai dele tem forma moderna, mas essência antiga.


Uma guerra sem nome — mas real

Enquanto muitos tratam os conflitos atuais como episódios isolados — a guerra na Ucrânia, os bombardeios em Gaza, os ataques no Mar Vermelho — é preciso observar o padrão: estamos vivendo uma nova guerra mundial, não-declarada, multifrontal e estratégica. Segundo a ONU, os impactos geopolíticos dessas crises armadas ultraam fronteiras locais.

Os Estados Unidos estão envolvidos, direta ou indiretamente, em pelo menos cinco grandes conflitos armados neste momento:

  • Na Ucrânia, com financiamento, armamento e articulação via OTAN;
  • Em Gaza, apoiando Israel política, militar e economicamente;
  • Na Síria e no Iraque, com tropas e ataques contra resquícios do Estado Islâmico;
  • No Iêmen, com bombardeios contra os Houthis;
  • E em regiões da África, como a Somália, com operações antiterrorismo.

Além de alguns outros eventos menores, utilizando drones. Esses não são eventos isolados. São peças de um jogo geopolítico maior, no qual o uso do poderio militar serve para garantir controle estratégico, zonas de influência e o a recursos vitais.


A motivação: hegemonia total

Diferente das guerras do século XX, que se motivavam por conquistas territoriais e rivalidades nacionalistas, as guerras de hoje são motivadas por um objetivo mais amplo e mais frio: a manutenção da hegemonia global.

Não se trata mais de fincar bandeiras em solo estrangeiro, mas de controlar rotas comerciais, reservas minerais, corredores logísticos, alianças políticas e fluxos de informação. A guerra tornou-se sistêmica. Ela não precisa ser anunciada. Basta que funcione.


Quando “loucura” é cálculo

Muito do que parece delírio é, na verdade, estratégia. A proposta de Donald Trump de comprar a Groenlândia, transformar o Canadá no 51º estado americano, ou “cobrar” a ajuda militar à Ucrânia com recursos minerais ucranianos, não são apenas devaneios exóticos. São sinais públicos de uma mentalidade imperial, em que cada território tem um valor estratégico — seja pelo que produz, pelo que conecta ou por quem ameaça.

A retórica de retomar o Canal do Panamá segue a mesma lógica: não é apenas nostalgia de um ado de controle, mas o desejo de restaurar pontos-chave de circulação global sob comando americano, num mundo cada vez mais multipolar.

E os balões “misteriosos” avistados sobre os Estados Unidos e a Coreia do Sul — atribuídos à China e à Coreia do Norte — também não são episódios banais ou folclóricos. São testes de reação, mensagens aéreas, provocativas, simbólicas, com intenção clara de reposicionar o eixo das atenções militares e diplomáticas. São, em linguagem geopolítica, atos de presença. E quando a presença é no céu, sobre o território rival, a simbologia é explosiva.

Esses gestos — por mais caricatos que possam parecer à primeira vista — fazem parte de um novo teatro de guerra onde imagem, percepção e intimidação são tão eficazes quanto o disparo de um míssil.


Gaza: um posto avançado em formação

O que ocorre em Gaza é mais do que uma guerra contra o Hamas. Trata-se de uma reconfiguração regional. A brutalidade dos ataques, a destruição massiva e o esvaziamento de populações civis apontam para algo mais profundo: a consolidação de Israel como uma extensão direta da presença americana no Oriente Médio.

Um ponto estratégico, armado e permanentemente posicionado entre Irã, Síria, Arábia Saudita e Egito. Não é apenas guerra. É arquitetura geopolítica. Essa interpretação é sustentada inclusive por especialistas da ONU, que veem em certos ataques ações que podem configurar extermínio deliberado de civis, como exposto na reportagem da Reuters:

https://www.reuters.com/world/middle-east/israel-commits-extermination-gaza-by-killing-schools-un-experts-say-2025-06-10


O recado de Nagasaki

Costuma-se dizer que Hiroshima foi um “mal necessário”. Mas Nagasaki foi uma mensagem. A segunda bomba não era necessária do ponto de vista militar. Foi usada como sinal: para mostrar ao mundo quem aria a ditar as regras dali em diante.

Desde então, o “ovo” continuou sua gestação. E a cada conflito não resolvido, cada guerra por procuração, cada silêncio diplomático diante de massacres, novas rachaduras surgem.


A serpente está entre nós

A guerra moderna não se parece com as do ado. Ela é contínua, fria, indireta e altamente tecnológica. Usa drones, sanções, desinformação e alianças instáveis. E o mais assustador: tornou-se normal.

Estamos cercados por frentes de batalha, mas distraídos. Vivendo sob um estado de exceção permanente, mas sem declarar emergência. A hegemonia global se sustenta não só pela força, mas pela naturalização da guerra como ferramenta de ordem.

O “Ovo da Serpente” não é mais apenas uma metáfora. Ele está aqui. E está rachando.


Marcelo Carvalho-Bastos

Documentarista, roteirista e engenheiro. Pesquisa temas ligados à ética, poder e sistemas sociais.

Nota sobre o título:
O título deste artigo faz referência ao filme O Ovo da Serpente (The Serpent’s Egg, 1977), dirigido por Ingmar Bergman. A obra se a na Berlim dos anos 1920 e retrata a atmosfera de desagregação social e moral que precedeu a ascensão do nazismo. A metáfora do “ovo da serpente” sugere a ideia de que, mesmo antes da eclosão de um mal evidente, seus sinais já estão incubados e visíveis para quem deseja enxergar. O conceito foi adaptado aqui para refletir o cenário geopolítico contemporâneo, onde a violência estratégica e o domínio hegemônico se desenvolvem sob aparente normalidade.

Marcelo Carvalho-Bastos
Marcelo Carvalho-Bastos
Engenheiro químico com MBA e especialização ambiental. Atuou em projetos de TI, biotec e, atualmente, em cinema documental, roteiro e edição de vídeo.

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